"(...)não há nada no mundo que me interesse tanto como as crianças. Quando as observo, noto nesses pequenos seres o germe de todas as virtudes, de todas as faculdades que um dia lhes serão necessárias: em sua teimosia vejo a futura constância e firmeza de caráter; em suas travessuras, o bom humor que lhes fará vencer facilmente os perigos do mundo. E tudo isso de modo tão puro, tão íntegro! Sempre e sempre eu evoco estas palavras preciosas do Divino Mestre:"Se não vos tornardes igual a essas!..." Pois bem, meu caro amigo, as crianças, que são nossos iguais, que deveríamos tomar como modelos, nós as tratamos como nossos vassalos! Não queremos que elas tenham vontade! E nós não temos? Por que deveríamos ter privilégios? Por sermos mais velhos e mais experientes?... Deus do céu! Você só vê velhas crianças e crianças jovens, nada mais(...)" Werther em " Os Sofrimentos do Jovem Wether"- GOETHE Segunda típica de começo de mês, manhã escura e chuvosa na qual eu trocaria tudo pelos meus lençóis de volta. Mas eu que não tenho, e nunca tive, esse luxo que é o poder de escolha me encontrava em uma fila por sinal um tanto quanto extensa.
A cabeça cheia de contas, nas quais a maioria subtrações. Fui lentamente fechando os olhos e a gravidade foi fazendo valer-se, quando esbarrei de uma vez na mulher na minha frente e quase levei lhe a bolsa ao chão. Sem saber como me desculpar, olhei para traz e fiz o óbvio maldoso, apontei para criança que inocente dava a mão ao pai. E nesta entreguei toda a culpa do acidente.
A consciência pesou por um estante mas logo passou. Convenhamos que nunca fui muito ético e enfrentar uma mulher me encarando por possíveis duas horas futuras não me agradava nada. E o que poderia ela fazer a uma criança, não é nessa idade que permitimos que aprontem sem encher lhes de sermões do tipo "Já não acha que está crescido para esse tipo de atitude?", até porque diferente de mim, um homem que cresceu até de mais, aquela logo atrás de mim realmente não tinha tamanho pra nada.
Entediado e sonolento resolvi tentar chamar a atenção daquela criaturinha. Sentia que ia dormir se não arranjasse alguma motivação, e já que uma vez deu certo, se novamente esbarrasse naquela que me antecede na fila tenho um plano de fuga quanto a culpa. Mas como abordar uma criança? Não estava disposto a imitar vozes infantis e fazer careta, seria me rebaixar e rebaixa-la também. E toda aquela cena me parece de tamanha falsidade, só porque têm menos idade não significa que tenha doenças ou que sejam de outro mundo, vão crescer de toda forma e esconder o mundo não vai ajudar. Ninguém nunca me escondeu nunca me encheram de sonhos e dengos e mesmo assim não cresci com raiva do mundo.
Confesso que também não sou o cara mais carinhoso e atencioso do mundo, nem paciente, ou crítico ou... Não importa! Não tenho nem um tipo de trauma. Consequentemente não teria dificuldade de chamar a atenção da criança, podia lhe oferecer algum doce, só que estaria me contradizendo, não iria escorar em outras coisas, ia oferecer somente minha presença.
Na verdade estava preocupado demais, eu não precisava dela. Ela que precisava de mim. Agora que estava confiante virei pra traz e lhe mandei um sorriso meio sem graça e acenei com mão direita. A criança em questão, que pude notar era um menino, se escondeu atrás do pai abrasando forte suas pernas. Acabei então de comprar uma briga comigo mesmo, como pude ser rejeitado? Por uma criança? Devia ela saber que tenho quase o triplo de seu tamanho e que em seu lugar não rejeitaria a companhia de um homem como eu.
Me deparei com um sentimento que eu costumo rejeitar, eu precisava dele. Não deixaria aquela fila sem que me desse alguma atenção, abaixei e me igualei ao seu tamanho e puxei um dialogo inocente e fútil que não passaria de educação se direcionado a uma adulto “Oi, tudo bem?". O menino se conteve, olhou para o pai e não vendo nenhum olhar de reprovação se aproximou. Fiquei nervoso, na situação em que estava recuar seria perder a guerra, mas não tinha mais armas para lutar.
E tomando todo o domínio do momento começou a brincar com minha jaqueta que apresentava alguns buracos e manchas. Ele controlava meus movimentos e prendi meu olhar na mãozinha que desfiava o tecido como se estivesse o reformando. Que criatura boba, nem mesmo sabe meu nome e já se entregou a mim. Ou eu estava em suas mãos? Será minha inexperiência com crianças que me deixou tão perplexo quanto sua doçura?
Eu definitivamente precisava disso, na verdade sempre precisei. Não sei quanto ao resto do mundo mas imagino que não seja uma sensação tão individual, acredito que hei de encontrar alguém que concorde com as minhas novas conclusões. Nós precisamos da infância, não só a nossa, mas também a das crianças. Pode se até descartar o discurso obvio em que se afirma que são elas o futuro e mais uma serie de frases emotivas que lemos normalmente em propaganda de loja infantil. Não é com elas que me vejo agora preocupado, é comigo.
Não sejamos hipócritas. Quantas vezes fizemos como eu? Atribuir lhes culpa e inventar desculpas na qual elas se integram. Quantas vezes não fingi ocupar-me delas para na verdade me desocupar de todo resto? E quanto à leveza que têm? Aceitam ser conduzidas, e acreditam e admiram-nos. São poucos os sentimentos que se igualam ao de sentir se um exemplo, um espelho. Deveria isso corrigir os adultos e espirar as crianças. E hoje os problemas e doenças são em grande parte emocionais, temos muito perto a cura destes males. Alegria, persistência, simplicidade, vontade, verdade, encanto, disposição, amor. Sim precisamos, já tivemos, mas perdemos. Nos resta recuperar e o engraçado é que é fácil de achar. O maior problema é que ninguém quer procurar.
O tempo passou, a fila andou. Meu novo amigo muito me mostrou coisas importantíssimas como o dente que lhe faltava ou o roxo no joelho. E quando digo importante embora pareça irônico quero atribuir sentido literal a tal frase. Eu lhe mostrei coisas tolas como contas e aparelhos eletrônicos. O tempo passou, a fila andou, minha vez chegou. Fiz o que tinha que ser feito e deixei minha nova alegria, e ao cruzar a porta de vidro do estabelecimento voltei à velhice rancorosa, impaciente e oca.
“Grande é a poesia, a bondade e as danças...Mas o melhor do mundo são as crianças”
Fernando Pessoa